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E(e)spírito e ciúmes em Tiago 4:5

 


Vamos tentar elucidar como prometido um pouco mais essa passagem, mas já adianto que talvez decepcione a alguns na conclusão, ou não conclusão ao final. Mas vamos em frente sem mais spoilers.

 

Primeiro vamos tentar trabalhar o conceito e definição da palavra ciúme. Antes de mais nada vamos dissocia-la da vertente absolutamente maniqueísta da sociedade atual onde a palavra é associada apenas a questão de uma posse quase doentia sobre uma pessoa ou um objeto, algo quase patológico. Esqueça esse conceito e vamos tentar entender o conceito do ponto de vista bíblico.

 

Vamos nos ater a tratar as referencias no Novo Testamento. A palavra grega que é muito traduzida por ciúmes tem como sentido básico desse termo: calor, fervor, borbulhar ou encher, que figurativamente pode ser entendido como indignação, rivalidade, oposição a alguém ou algo, podendo levar a atitudes boas ou ruins.

 

Quando "zelos" é aplicada ao santo Deus, o sentido é unicamente positivo, enquanto que há variação de intenção dos autores bíblicos quando relacionada ao homem:

 

a)    Bom sentido[1]

a.    Romanos 10.2;

b.    2ª Coríntios 7.7,11; 9.2;

c.     Filipenses 3.6;

b)   Mau sentido - Sentido mau[2]

a.     Romanos 13.13;

b.    1ª Coríntios 3.3;

c.     2ª Coríntios 12.20.

 

Resolvido? Infelizmente não, mesmo porque a palavra usada em Tiago não é “zelos” e sim “fthonos" ou “pthonos que sem dúvida tem sempre um sentido de inveja. É por exemplo o sentido de 1ª Coríntios 13:4 ou ainda em 1ª Coríntios 3.3 e 2ª Coríntios 12.20 tratando das dissensões da igreja, em Mateus 27.18 e Marcos 15.10 nos evangelhos ao se referir aos responsáveis pela condenação de Jesus e no livros de Atos 7:9 ao tratar do sentimento de Saul contra Davi.

 

Enquanto zelos é “o desejo de ter aquilo que outro homem possui, sem necessariamente ter ressentimento contra aquele que o possui”, pthonos “se ocupa mais em privar o outro da coisa desejada do que em obtê-la”. Ou seja segundo a maioria dos estudiosos do grego, zelo está mais para cuidado e carinho enquanto pthonos está para inveja e cobiça.

 

· Gálatas 5:25-26 “invejando-nos uns aos outros” contrasta com “viver no Espírito”;

·  Gálatas 5:21 é uma “obra da carne”;

· Romanos 1:29 é uma característica daqueles a quem Deus entregou a um “sentimento perverso”;

·  Tito 3:3 dos inconversos.

·  1ª Pedro 2:1 é algo que os crentes devem deixar para trás;

· 1ª Timóteo 6:4 diz que nasce de questões e contendas de palavras motivadas pela soberba.

· Filemon 1:15 contrasta com “boa vontade”.

 

Já a questão do e(E)spírito é mais complicada ainda. Temos uma variedade de formas com que “προς φθονον επιποθει το πνευμα ο κατωκησεν εν ημιν” (literalmente “com ciúme anseia o espírito que fez habitar em nós”), é traduzido.

 

  • Almeida Revista Corrigida - “o Espírito que em nós habita tem ciúmes”;
  • Tradução Brasileira - “com zelos anela por nós o Espírito que ele fez habitar em nós”;
  • Almeida Revista - “o Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme”;
  • Almeida Revista e Atualizada - “é com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós”;
  • NVI - “o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes;
  • Bíblia de Jerusalém - “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?”;
  • Almeida Revista e Corrigida Anotada - “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”;
  • Nova Tradução na Linguagem de Hoje - “o espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”;
  • Bíblia Viva - “o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com terno ciúme”;
  • Versão Fácil de Ler - “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”.

 

A despeito da maioria das traduções colocar a palavra Espírito com o “E” maiúsculo o que traria entendimento que trata do Espírito Santo não é consenso.

 

Impossível fazer qualquer conclusão a partir das traduções. Não se conclui nem se é uma pergunta ou uma afirmação como também não se conclui se estaria falando de um espírito humano, de um espírito maligno ou do Espírito Santo. Não há convergência comum a todas.

 

Voltando a Tiago 4:5 assumimos que achamos quase impossível ter certeza absoluta sobre o que Tiago de fato tinha em mente nesse texto. Visitando comentários bíblicos de dois nomes bem respeitados na IPB, o Rev. Hernades Dias Lopes conclui, porém sem declinar uma argumentação a respeito que trata-se do Espírito de Deus tendo cuidado dos seus. Já o Rev. Agustus Nicodemus Lopes tem uma opinião mais cautelosa de que Tiago se referia ao espírito humano porém admitindo a dificuldade existente no texto.

 

A maior dificuldade está em que, apesar de Tiago esteja citando as Escrituras não se encontra um texto que possa ser assumido em definitivo como paralelo.[3]

 

A identificação do sujeito da oração fica portanto muito prejudicada. Nós vamos tentar apresentar as variantes existentes em debate. Antes que alguém se antecipe descartando a malignidade do espírito citado por conta da afirmação “... fez habitar em nós ...” citamos que há igualmente discordância nesse texto onde muitos entendem que a tradução correta seria “... habita em nós...” a mudança da sentença faz muita diferença.

 

Essa segunda interpretação nos parece a mais correta, se levarmos em consideração que o próprio Tiago nesse capítulo trata do espírito humano causando problemas exatamente por inveja e cobiça. Há ainda um contraponto como verso anterior onde Tiago diz que há a graça.

 

Não foi nossa intenção exaurir o estudo do assunto mas instigar o leitor a pensar sobre e buscar aprofundar seu próprio estudo em comentários bíblicos e artigos publicados, existe muito material disponível da internet a respeito.

 

No entanto não vamos nos omitir em dizer qual interpretação nos parece mais correta. Temos que considerar que a inveja e o ciúme (“pthonos”) sempre tem um mau sentido na Bíblia e em nenhum local é utilizado como adjetivos para as pessoas da trindade Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo entendemos como improvável que Tiago tenha usado aqui isoladamente com esse sentido. O verso seguinte estabelece um contraste, dizendo “Antes, dá maior graça”, logo entendemos aqui “pthonos” como uma colocação maléfica que por si só já é impossível de associar a Deus e aos seus atributos de santidade e bondade.

 

Temos duas possíveis conclusões. Ou se trata apenas de uma pergunta retórica, “o Espírito tem ciúme?” cujo a resposta será sempre um sonoro “Não”) ou o espírito citado aqui é o espirito humano, decaído e tomado de paixões carnais.

 

Nós não firmamos posição, embora achemos a primeira mais aceitável por entendermos que a tradução “fez habitar em nós” está correta e o “fez” faz todo sentido em relação ao Espírito Santo de Deus pelo contexto mas pensamos que não dá para descartarmos completamente a segunda.

 

Esperamos ter contribuído para instigar a curiosidade de todos e incentiva-los ao aprofundamento do conhecimento.

 

 

 



[1] Referencias correspondentes no Antigo Testamento - Isaías  9.7; Ezequiel 16;37-38; 23.25; Salmos 69.9; 119.139.

[2] Jó 5.2; Provérbios 6.24; Eclesiastes 4.4; 9.6

[3] Há alguns textos que são citados mas nenhum deles é conclusivo.

a)     “eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso” – Êxodo 20:5

b)     “o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso” - Êxodo 34:14

c)      “Zelei por Sião com grande zelo, e com grande indignação zelei por ela”  Zacarias 8:2;

d)     “o SENHOR teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Deuteronômio 4:24.

e)     “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar” – Genesis 4:7

a)     Outras passagens: Gn 6:3; Is 63:8–16; Ez 36:17; Zc 1:14; 8:2-3

                 

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