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Os Evangelhos – Um papo tenso e profundo com Nicodemus (12) – Parte 1

 



Leia João 3: 1-21

 

João registra muitos discursos, ou sermões, de Jesus, mais do que os demais evangelho, focados na instrução sobre assuntos espirituais relativos a sua missão e sobre o Reino. Este é o primeiro.

 

Mas antes de entrarmos propriamente na conversa pensemos Quem era Nicodemos? O que sabemos é que foi um fariseu e um dos principais, ou seja membro do Sinédrio[1]. O fato dele ter ido visitar Jesus a noite possivelmente tenha a ver com a vontade de não ser notado.

 

Apesar do nome Nicodemos[2] ser grego isso não era incomum, nos tempos de Jesus já existia essa mistura de nomes. Ele era mestre em Israel conforme o próprio Jesus alude. Talvez fosse rico[3], o que era comum entre os membros do sinédrio. Não existem registros confiáveis além desses relatados nos textos bíblicos sobre ele.[4]

 

Como já mencionado Nicodemos foi visitar Jesus a noite, podemos interpretar isso de duas formas, a primeira por um temor de ser visto mas poderia também ser um sinal de deferência a Jesus, um mestre que não devia ser incomodado durante o dia. Um terceira hipótese de que essa noite fosse uma metáfora sobre a situação de vida de Nicodemos não nos parece condizente com a forma de apresentação dos fatos feitas por João. [5]

 

Nicodemos inicia a conversa com uma afirmação de respeito por Jesus chamando-o de “... Mestre vindo da parte de Deus ...” e faz a correlação de motivo dessa constatação, “... porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se e Deus não estiver com ele.” O que primeiro podemos notar aqui era o lado místico sobre elevado pela religião judaica, o enfoque era mais em sinais, o que foi em outros momentos até condenado por jesus, do que na verdadeira mensagem. Ele provavelmente já tinha um certo conhecimento por Jesus, mas nem de longe a compreensão de quem de fato era, entendendo-o se muito como um novo profeta apenas.

 

Um detalhe importante, do verso 1 ao 15 João relata um diálogo com dois personagens, Jesus e Nicodemos, a partir do verso 16 não há porque não pensarmos que o diálogo não continuou mas a forma muda e passa a ser como um discurso expositivo.

 

A resposta de Jesus introduz de forma até inesperada e abrupta um assunto para o qual certamente Nicodemos não estava preparado, “... se alguém não nascer  de novo[6], não pode ver o reino de Deus”.[7] É bastante comum encontrarmos nos discursos e conversas de Jesus esse ato conduzir o debate para uma área mais profunda, instigante e por vezes incômoda para o seu interlocutor. É possível que João não tenha registrado toda a conversa em todos os detalhes e algo já houvesse sido dito anteriormente que levasse a essa afirmação. Ou mesmo a primeira afirmação de Nicodemos sobre a mestria de jesus fosse uma forma de inquirir quem de fato Jesus seria. Mas é fato que Nicodemos entendeu como o ato de nascer biologicamente de novo, ou até mesmo estivesse usando de certo sarcasmo na sua pergunta. Jesus introduz então um conceito primordial em sua mensagem, “... nascer da água e do Espírito ...”.

 

Mas o que seria isso? É o que chamamos de Regeneração.

 

A regeneração é o ato que transforma o íntimo do ser humano, livrando-o da escravidão de sua natureza pecaminosa. É Deus agindo por Sua própria iniciativa no âmago do homem, não há preparação, predisposição. Os descendentes de Adão e Eva herdaram o pecado deles e são moralmente incapazes de fazer o que é bom. Paulo escreveu aos efésios que as pessoas estão mortas em seus delitos e pecados[8]. Esse ato não recompensa nenhum ato ou mérito humano pelo contrário é um ato surgido livremente e no amor. Deus.

 

Jesus diz que, a menos que se nasça de novo, não se pode ver o Reino do céu. Sem a graça de Deus, os pecadores não podem encontrar a porta, muito menos entrar por ela. Em outro lugar, Jesus disse: "Sem mim nada podeis fazer"; e, em se tratando da salvação, "sem Deus nada é possível''. A regeneração é o dom da graça de Deus; é a obra imediata, sobrenatural do Espírito Santo, realizada em nós. Seu efeito é fazer com que nós, da morte espiritual, passemos à vida espiritual. Muda a disposição de nossa alma, inclinando nosso coração para Deus. O fruto da regeneração é a fé. A regeneração antecede a fé.

 

Jesus questionou o fato de Nicodemos ficar perplexo com a exigência de um novo nascimento. Nicodemos devia ter compreendido, com base no Antigo Testamento, que ele era um pecador e necessitava de uma nova vida; e ele deve ter conhecido os profetas, que prometeram que Deus haveria de remover os corações de carne e substituí-los por corações prontos para fazer a vontade de Deus. Deus ressuscitaria os mortos, daria vista aos cegos e pregaria as boas-novas àqueles que não podiam salvar-se a si mesmos.”[9]

 

O que seria então nascer da água e do Espírito? Existem alguma associações propostas: A água faria referência ao líquido amniótico. Achamos essa ideia nada plausível. A água faria referência ao batismo de João. Também não nos parece plausível tendo em vista que Jesus não faz outras referências no Novo Testamento a esse batismo. Tampouco podemos aludir o batismo cristão já que não faria qualquer sentido para Nicodemos.

 

É bem mais provável que Jesus usando inclusive o conhecimento que Nicodemos tinha das escrituras estivesse se referindo a passagens do Antigo testamento que falam sobre o fim ou plenitude dos tempos conforme:

 

“Até que se derrame sobre nós o espírito lá do alto; então o deserto se tornará em campo fértil, e o campo fértil será reputado por um bosque.” - Isaías 32:15

 

“Porque derramarei água sobre o sedento, e rios sobre a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade, e a minha bênção sobre os teus descendentes.” - Isaías 44:3

 

“Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei.
E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis.”- Ezequiel 36:25-27

 

Um outro conceito aqui que entendemos como importante enfatizar é a expressão Reino de Deus.

 

A expressão completa ‘o Reino de Deus’ não ocorre no Antigo Testamento, embora um número de passagens fale do reino do Senhor, ou, mais dinamicamente, insiste que o Senhor reina, ou que o Senhor é rei (Êx 15.18; SI 93.1; 103.19). Esses textos falam do alcance universal da soberania de Deus. Todos estão ‘dentro’ daquele Reino, se sabem isso, ou gostam disso, ou não. Mas os profetas também previram o advento de um reino no fim da história, presidido por um filho de Davi (Is 9.1-7; 11; Zc 9.9,10), pelo servo do Senhor (Is 42.1...; 49.1...), pelo próprio Senhor (Is 9.1-7; 33.2; Zc 14.9). O governante vindouro era assim diferenciado do Senhor, embora, em outras passagens, fosse identificado com ele — assim como a Palavra é tanto diferenciada de Deus como identificada com ele (Jo 1.1). Baseado no relacionamento de aliança com o povo de Israel (Ex 19.5,6; Dt 33.5), o conceito de Reino recebeu formulação definitiva na promessa de que a linhagem de Davi seria eterna (2 Sm 7.12-16). Aspectos futuros do Reino não são negligenciados por escritores do Antigo Testamento (Is 11:1...; Dn 2.44; 7.14, 27), incluindo a perspectiva da ressurreição da vida (Dn 12.1-3).[10]

 

O conceito judaico da profecia do reino de Deus era o da eternidade. No entanto o conceito que nos é apresentado por Jesus é de um Reino já efetivamente implantado. Ou seja, a nossa salvação já é presente, e não exclusivamente futura.

 

Carne versus Espírito. “... O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito ...” Jesus faz uma distinção bem clara entre os que são seus e os que não são ele associa isso ao novo nascimento citado, e passa a introduzir um conceito que causa muita discussão mas que se apresenta claro no texto de João mesmo que alguns optem por despreza-lo.

 

As palavras hebraica rüah e grega pneuma podem ser traduzidas por  sopro, vento ou espírito, embora no Novo Testamente em geral é usada com o sentido de espírito. Jesus meio que faz um trocadilho associando o pneuma (vento) ao pneuma (Espírito) para afirmar o conceito de liberdade de ação do mesmo. A característica associada aqui que é fundamental é que o vento não pode ser nem controlado, mas podemos detectar sua presença e efeitos. Nós o ouvimos, vemos o ondular das plantas, o movimentar das nuvens passando, vemos a poeira se movimentando em redemoinhos e até nos escondemos com medo das tempestades. O Espírito da mesma forma é incontrolável mas testemunhamos seus efeitos que são inegáveis e inconfundíveis. O Espírito Santo age quando e como lhe aprouver independente da vontade e busca humana.

 

Essa verdade é incômoda para muitos e o foi também para Nicodemos, acostumado a ensinar seus alunos com todas as crenças de que o cumprimento de atos e obediência aos mandamentos eram a porta de entrada no Reino. Jesus apresenta uma condição que foge ao controle humano. O nascimento do alto. Nicodemos que antes de se apresentou com certa humildade ao se referir a Jesus como Mestre vindo da parte de Deus agora se mostra incrédulo diante de tal ensinamento ao ponto de Jesus usar Ele agora de um certo sarcasmo e denotar surpresa de que um mestre judeu não entendesse isso “Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?”.

 

A partir daí não há mais um diálogo mas somente um monólogo de Jesus, Nicodemos certamente sentiu o golpe e calou, Jesus então continua a explanar seu argumento para todos os presentes. Se não aceitais essas coisas mais simples como quereis que falemos de coisas mais aprofundadas? Um pergunta direta e contundente de Jesus. A distinção entre as coisas terrenas e do céu não é algo tão óbvio mas a explicação mais plausível que nos parece é uma sutil interpretação que entende que “coisas terrenas” refere-se ao nascimento e ao sopro do vento e que a crítica está na falta de compreensão da analogia até simples feita por Jesus em relação ao vento e ao Espírito, e as “coisas do alto” esteja se referindo a ensinos e aplicações mais aprofundadas que talvez estivessem buscando.

 

O verso 13 pensamos que em geral é mal compreendido. Vamos escrever um artigo mais específico sobre ele. Mas o que podemos adiantar é que não faz nenhum sentido a ideia de que Jesus já havia estado na Terra tinha ido ao céu e voltado mais uma vez a Terra a luz do restante das escrituras.

 

Os versos 14 e 15 trazem claramente uma profecia do próprio Jesus sobre sua futura crucificação e traz um duplo sentido: o da crucificação e o da exaltação. A morte de Cristo na cruz, sua ressurreição e sua glorificação, juntas revelam a glória de Deus. A palavra "importa" leva-nos a atentar para o soberano propósito de Deus. A crucificação foi a chave do eterno plano de Deus para salvar o seu povo.[11]

 

Vamos continuar a partir do verso 16 num próximo artigo.

 

 



[1] o Sinédrio era um tipo de Corte Suprema dos judeus que se reunia em Jerusalém. No tempo de Jesus, a jurisdição do Sinédrio era tanto religiosa, quanto civil e de certa maneira até criminal.

[2] Conquistador do povo

[3] João 3:1,10; 19:39

[4] João 3:1-21;  7:50-52; 19:38-42

[5] É possível que Nicodemos não tenha ido encontrar com Jesus sozinho como também é provável que Jesus não estivesse sozinho, ambos podiam estar acompanhados de seus discípulos o que seria muito natural e comum para a cultura da época onde os discípulos de um mestre passavem o dia todo com ele e até dormiam e se alimentavam juntos.

[6] A tradução “… nascer do alto …” é perfeitamente aceitável e concorda até melhor com os versos 12 e 13 e também com Lucas 19:11,23.

[7] A forma de expressão Em verdade repetida é um recurso de ênfase do hebraico já que não existe o superlativo, ou seja algo como “verdadeiríssimo”.

[8] Efésios 2:1

[9] Comentário na Bíblia de Estudo de Genebra.

[10] Carson, DA. Comentário de João, página 188.

[11] Atos 4.27-28.

 

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