Fui instado por minha esposa a comentar uma afirmação feita num grupo de estudo que está abordando no momento a história de Abrão no livro de Gênesis. Embora comentar de forma crítica uma afirmação é complicado sem conhecer todo o contexto, vamos tentar.
Antes de qualquer coisa precisamos entender que:
1) O que Deus quis nos revelar, e ensinar, de forma clara estará explicitado nas Escrituras;
2) O que não está explicitado pela afirmação ou pelo contexto pode até ser inferido desde que existam elementos que corroborem de certa forma a questão;
Outra coisa importante ressaltar é que os personagens bíblicos, por mais “heróis” da fé que sejam, eram homens, pecadores e sujeitos as mesmas tentações e imperfeições que nós temos. Não são super heróis só com qualidades, nem por isso deixam de ser exemplos para nós nas virtudes, mesmo às vezes embotadas, que tiveram.
Feito este preambulo vamos a questão em especial.
A afirmação em si é de certa forma uma platitude. Meio como a questão do copo meio vazio ou meio cheio. Claro que Deus requer de nós uma obediência perfeita, total, porém ao mesmo tempo sabemos ser isso impossível, e apenas pelo sacrifício de Jesus podemos alcançar tal justiça. E quando falamos aqui alcançar não falamos de algo possível e sim de algo imputado por aquele que cumpriu.
Nesse aspecto Abrão, Sara, Moisés, Davi, Salomão, entre tantos outros tem erros, mais graves ou menos graves na nossa visão humana, citados na Bíblia, porém podemos inferir pelo que a Palavra nos ensina de uma forma geral que personagens como José, Daniel e Paulo, após a conversão, também cometeram seus pecados ao longo de suas vidas. Isso não os torna maiores ou menores, os torna homens, cada um com sua natureza humana totalmente corrompida (vale estudar o conceito da depravação total).
Voltando ao assunto Abrão e sua suposta desobediência na saída de Ur pelo chamado e vocação divinas. Até poderíamos quem sabe inferir alguns erros nessa saída. Me foram apresentadas duas questões ambas ligadas a ordem de que Abrão saísse “... da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, e dirige-te à terra que te indicarei! 2Eis que farei de ti um grande povo: Eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; serás tu uma bênção!” Genesis 12:1
a) Teria descumprido a ordem ao levar a Lot junto com ele?
b) Teria descumprido a ordem ao levar seu pai, Terá, junto com ele?
Vamos tratar das duas em conjunto por vermos que no fim se tratam da mesma questão fundamentalmente.
Nos parece que apesar de admitirmos possivelmente alguma inferência nesse sentido ela é exagerada porque:
1) O sentido de imediatismo na saída de Abrão para Canaã não está implícito nem explicito no texto; Temos que ter em mente que as jornadas na época compreendiam uma logística monstruosa com diversas paradas de dias em alguns locais. Abrão era um homem de muitas posses e servos;[1]
2) Na vocação feita por Deus em Genesis 12:1 não há uma clara definição de em qual local Abrão a recebeu, se em Ur ou em Harã. Só isso já derrubaria a questão envolvendo Terá te-lo acompanhado e isso ser sinal de desobediência;[2]
3) A Bíblia diz que Terá decidiu sair com sua família de Ur para Harã;[3]
4) Lot era da casa de Terá, e com a morte deste passou a ser parte da casa de Abrão, isso era um arranjo comum no período patriarcal do contexto do Antigo testamento;[4]
5) O texto bíblico nos diz que Lot decidiu seguir e ir com Abrão, não que Abrão de uma forma desobediente chamou-o;
6) Certamente a família de Abrão deveria ser bem maior do que apenas Terá e Lot, esposa e filhos;[5]
7) Não há nada no texto que explicite a ideia de sair sem mais ninguém, o conceito era sair da zona de conforto, do local onde estava, e se lançar numa jornada para uma terra já habitada, mas razoavelmente desconhecida, o desafio a fé não era abandonar os parentes e sim iniciar uma nova vida e confiar na promessa da descendência.
Diante do exposto podemos dizer que atribuir a este fato uma importância grande de desobediência é um tanto quando forçado, não há nada nos textos envolvidos que corroborem uma afirmação nesse sentido.
Por outro lado, Abrão e Sarai, posteriormente, Abraão e Sara, tem outros tantos eventos em suas vidas que demonstram sua falibilidade e imperfeição.
a) O riso de Sara diante da promessa de Deus;
b) Abrão com sua postura covarde ante o Faraó;
c) Abrão com sua postura hipócrita e oportunista ante Abimeleque;
d) Sara oferecer Hagar e Abraão aceitar na tentativa de darem uma “ajudinha” a Deus;
e) O egoísmo e falta de generosidade de Sara na forma como tratou Hagar e Ismael;
Poderíamos falar desses 5 erros, esses sim bem explícitos e sobre os quais não há dúvidas que existiram e trouxeram consequências, mas precisaríamos de outros artigos para tanto.
[1] Uma jornada de cerca de 60 dias em passo acelerado, se considerando o armar e desarmar acampamento, conseguir comida e água, tratar os que adoecessem, e lembremos que Abrão e Sara já não eram dois jovens, podemos pensar num jornada de até um ano.
[2] Essa confusão se dá pelo texto de Genesis 15:7 e Neemias 9:7 onde os autores falam que Deus tirou Abrão da terra de Ur, porém isso pode facilmente ser interpretado no contexto que a decisão de Terá em sair de Ur para Harã foi decretada por Deus e não que o chamado de Abrão se deu ali.
[3] Genesis 11:11
[4] Não fica claro porque Lot estava ligado a Terá, possivelmente seus pais Naor e Milca tivessem falecido. Outra possibilidade é que houvesse uma dissenção familiar por questões religiosas mas isso não está também explicitado no texto e seria mera conjectura.
[5] Analisando as idades é bem provável que quando Abrão partiu de Harã seu pai Terá ainda. Estaria vivo;
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